30 setembro 2009

O Estado laico e a Retirada de Símbolos Religiosos das Repartições Públicas



Recemente, o Ministério Público Federal ingressou com uma ação cívil pública, pleteiando que fossem retirados das repartições públicas do Estado de São Paulo, todos os síbolos religiosos, entre os quais o mais utilizado é a cruz, representação maior da fé cristã. A ação pede a concessão de liminar, denegada pela juíza da 3ª Vara Cível Federal, Dra. Maria Lúcia Lencastre Ursaia, para a remoção entro do prazo máximo de 120 dias, sob pena de multa diária. Dentre os augumentos, encontra-se o de que pessoas que se dirigem aos prédios públicos poderam se sentir ofendidas pelos simbolos ou sinais religiosos. A argumentação básica é a de que o Brasil optou por um Estado laico.

Eis a questão: o Estado laico não tolera em suas repartições a expressão da fé em Deus, por meio de símbolos?

De acordo com o filósofo francês Lichel Villey, há uma e indesejável tendência nos sitemas jurídicos conteporâneos de conferirem a laicidade um conteúdo de antagonismo à religião, deturpando-a em puro laicismo, no qual, a fé é desprezada e totalmente substituída pelo racionalismo profano (A formação do pensamento jurídico moderno, SP, Martins Fontes, 2005). Nega-se a ressurreição de Cristo, bem como a seus milagres relatados por testemunhas no Evangelho porque tais fatos ofendem a razão mundana. Tudo o que não for possível demonstrar racionalmente, a luz da compreensão humana não é científico, não é laico, logo, se opõe ao Estado racional e moderno.

Trata-se de uma volta ao movimento iluminista do final do século XVIII, em que a soberba do antropocentrismo e o egoísmo individualista suplanta a crença em dogmas absolutos pré-constituídos.

Laico, no entanto, não quer dizer inimigo da religião.

Etimologicamente, laico ou leigo provém do termo grego laikós, que designa o que se refere ao povo (laós). O termo leico (laikós) serve apenas para diferenciar as pessoas consagradas para uma missão especial, tais como os diáconos, presbíteros e bispos, daqueles que são apenas consagrados no batismo (Dom Fernando Antônio Figueredo, Introdução à Patrística, RJ, Editora vozes, 2009, p. 46). Laico não designa, portanto, algo não religioso, nem contrário a fé, mas apenas aqueles que não exercitam como vocação, o ministério religioso. Estado laico não é Estado sem fé, ateu ou que se antepõe a simbolos de convicções religiosas, mas tão somente Estado não confessional, sem religião oficial ou obrigatória.

Assim, ao contrário do que parece à primeira vista, a expressão laico não se opõe, nem repudia, mas antes, coexiste pacificamente com as religiões, sem molestá-las ou coíbi-las. Aliás, a CF em seu artigo 19, I, prevê até mesmo a possibilidade de aliança entre Estado e Ingreja sempre que, nos termos da lei, houver interesse público. Um Estado não confessional significa apenas não regrado por normas religiosas, sem implicar em nehuma postura comissiva de hostilidade aos status quo.

A Constituição Federal de 1988 consagrou o Estado Democrático de Direito, calcado na busca da igualdade forma e material, tem como seu objetivo promover o bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, e se alicerça na dignidade da pessoa humana. Busca a tolerância mútua e a coexistência pacífica.

Cabe ao Estado e à sociedade em geral não encorajar manifestações de intolerância daqueles que se sintam ofendidos pela livre expressão da fé alheia. A retirada de símbolos já instalados, mesmo que em repartições públicas, leva à alteração de uma situação já consolidada em um país composto por uma quase totalidade de adeptos da fé cristã, e agride desnecessariamente os sentimentos de milhões brasileiros, apenas para contentar a intolerância e a supremacia da vontade de um restrito grupo de pessoas.

A Constituição Federal não conformou um Estado ateu, nem hostil ao cristianismo, apenas estabeleceu um regime não confessional. Não há religião oficial, mas também não há política oficial de repúdio à religião.

Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco observam: " o Estado brasileiro não é confessional, mas tampouco é ateu, como se deuz o preâmbulo da Constituição, que invoca a proteção de Deus. Admite igualmente, que o casamento religioso produza efeitos civis, na forma do disposto em lei (CF, art. 226, §§ 1º e 2º...a laicidade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé". ( Curso de Direito Constitucional, SP, Saraiva, 2007, p. 408/409).

Devemos buscar a conciliação como meio de transformar as relações pessoais e pacificar os conflitos. Como ensinou Nelson mandela, não há futuro para a humanidade sem perdão e reconciliação. Não basta a força e a coerção para a solução das crises nas relaçoes interpessoais. A verdadeira paz não se faz com o silenciar do outro, pois quando há um vencedor, sempre resta um vencido humilhado e pronto a desafogar os instintos de vingança. Paz e curar o coração das pessoas e dos povos. Paz é conseguir que vítimas e agressores se perdoem e se reconciliem. Paz é não se sentir ofendido pela liberdade de expressão alheia, mas, ao contrário, compreendê-la e tolerá-la. A religião tem sido relegada a um planon de separação abismal da vida secular, desperdiçando-se ao longo dos séculos, tantos ensinamentos que constam das escrituras sagradas e que poderiam ter levado à solução pacíficados conflitos e guerras que assolaram a humanidade. Como mecanismo eficaz de inibição da violência, da correção de rumos e da solução de desentendimentos, a religião deveria ser tratada com maior deferência e atenção.

Cabe a todos nós, tarefa de buscar a união e a tolerância entre Estado e religião, entendida como o complexo de regras calcadas na fé em Deus e na crença do compromisso de paz, harmonia e tolerância com a humanidade.

Sobre o Autor: Fernando Capez é Procurador de Justiça licenciado e Deputado Estadual. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em direito pela USP e doutor pela PUC/SP. Professor da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Autor de várias obras jurídicas. www.fernandocapez.com.br

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