O Promotor de Justiça Wendell Bethoven Agra, Coordenador das Promotorias de Justiça de Investigação Criminal do Mininstério Público do RN, em parecer referente a documento encaminhado pela Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar do RN, opinou pela inconstitucionalidade da lei de anistia, publicado no Diário Oficial do Estado do RN, neste dia 19/02/2010.
O Presidente da ASPRA PM/RN, porém alerta: Parecer não é decisão!
Abaixo a transcrição do parecer do Excelentíssimo Senhor Promotor:
"Peça de Informação de Investigação Criminal nº 026/2010
Noticiante: Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte – ACS-PM/RN
PARECER
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PENAL MILITAR. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS FORMULADO POR ASSOCIAÇÃO DE PRAÇAS DA POLÍCIA MILITAR. LEI Nº 12.191/2010. ANISTIA CONCEDIDA EM LEI FEDERAL A CRIMES MILITARES E INFRAÇÕES DISCIPLINARES PRATICADAS NO ÂMBITO DE MOVIMENTAÇÕES GREVISTAS DE MILITARES ESTADUAIS RETROATIVA AO ANO DE 1997. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL. IMPOSSIBILIDADE DE LEI FEDERAL DE ÍNDOLE PENAL ANISTIAR SANÇÕES ADMINISTRATIVAS APLICADAS COM FUNDAMENTO NA LEGISLAÇÃO ESTADUAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO. CONTRARIEDADE AOS PRINCÍPIOS DA HIERARQUIA E DISCIPLINA EM QUE SE BASEIAM AS ORGANIZAÇÕES MILITARES. VEDAÇÃO À PROTEÇÃO DEFICIENTE DE BEM JURÍDICO CONSTITUCIONALMENTE TUTELADO. VÍCIO DE INICIATIVA POR SE TRATAR DE LEI DE ORIGEM PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA. PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE AJUIZADA PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE DA LEI FLAGRANTEMENTE INCONSTITUCIONAL PRODUZIR EFEITOS IRREVERSÍVEIS. FUNÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE DEFESA DA ORDEM JURÍDICA E DOS INTERESSES SOCIAIS E DE CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL. NECESSIDADE DE EXPEDIÇÃO DE RECOMENDAÇÃO À ADMINISTRAÇÃO ESTADUAL E DE REPRESENTAÇÃO À PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. 1. A anistia é instituto de direito penal que constitui causa de extinção de punibilidade, não tendo consequências extrapenais, como efeitos cíveis ou administrativos. 2. Os policiais e bombeiros militares dos Estados são subordinados aos respectivos governadores e se submetem a regime jurídico diferenciados dos servidores civis, sendo-lhes constitucionalmente vedado o direito de greve e de sindicalização. 3. Viola o princípio federativo a lei editada pela União que, atentando contra a autonomia dos Estados, anistia infrações disciplinares praticadas por servidores estaduais, tipificadas e punidas de acordo com a legislação local. 4. É formalmente inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar que disponha sobre regime jurídico e punições de militares estaduais, uma vez que a iniciativa de lei, neste caso, é privativa do chefe do Poder Executivo. 5. A paralisação de atividades por militares, em movimento de greve, atenta contra os princípios constitucionais da hierarquia e disciplina em que se baseiam as organizações militares. 6. Ofende o princípio da razoabilidade, que veda a proteção deficiente a bens jurídicos penalmente relevantes, a lei ordinária que infirma regras e princípios consagrados na Constituição da República. 7. A lei flagrantemente inconstitucional, tanto no aspecto material quanto formal, não deve surtir efeitos irreversíveis. 8. Funções institucionais do Ministério Público de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia, e de controle externo da atividade policial. 9. Cabe ainda ao Ministério Público, como instituição encarregada da defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, recomendar aos órgãos da Administração Pública que os mesmos, no exercício do poder de auto-tutela, se abstenham de aplicar a lei inválida, bem como representar ao Procurador Geral da República pelo ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade.
1 . Relatório
Tratam os autos de pedido de providência formulado pela Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte - ACS-PM/RN, por seu presidente executivo, encaminhado inicialmente à Procuradoria Geral de Justiça, que cientifica o Ministério Público da sanção da Lei nº 12.191, de 13 de janeiro de 2010, publicada no Diário Oficial da União dos dias 13 e 15/01/2010, que concedeu anistia a policiais e bombeiros militares do Distrito Federal e dos Estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina, e solicita que a Instituição promova acompanhamento do cumprimento integral da referida lei, fazendo cessar qualquer procedimento em andamento no âmbito da Polícia Militar ou Bombeiro Militar e ainda, e se possível, emitir parecer orientando o Governo do Estado, Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social, Comandos Militares, Tribunais de Justiça ao cumprimento da referida Lei, garantindo assim a reintegração imediata aos quadros da Polícia Militar e Bombeiro Militar do Rio Grande do Norte de todos os Policiais e Bombeiros Militares que foram excluídos/licenciados por envolvimento em movimentos reivindicatórios entre o primeiro semestre de 1997 até o dia 14 de janeiro de 2010, como determina a Lei, restabelecendo, por consequência, todos os direitos assegurados as praças, como medida de lídima justiça” (redação conforme o original).
É que consta dos autos.
1. 1 Delimitação da atuação do Ministério Público em face do pedido de providências
É necessário, antes de qualquer manifestação, delimitar o âmbito de atuação do Ministério Público estadual, em particular desta Promotoria de Justiça de Investigações Criminais e de Controle Externo da Atividade Policial, em face do pedido de providências formulado. Desta forma, é imperioso destacar, em primeiro lugar, que o órgão ministerial não realiza consultoria jurídica de entidades públicas; depois, que os controles externo e interno das atividades das polícias estaduais e do corpo de bombeiros militar não se confundem, sendo autônomos; e, ainda, que a atividade jurisdicional goza de absoluta independência, de sorte que o Ministério Público não tem o poder de obrigar a Administração Pública a revisar punições disciplinares – aplicadas no âmbito do controle interno nem tampouco lhe cabe orientar julgamentos futuros do Poder Judiciário.
A matéria suscitada, contudo, revela contornos constitucionais que permitem ao Ministério Público, como Instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, e também responsável pelo controle externo da atividade policial e por zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância aos direitos assegurados na Constituição Federal (arts. 127 e 129, incisos II e VI), se posicionar juridicamente, adotando como providências (1) a recomendação de determinada forma de atuação aos órgãos controlados, sem caráter de consultoria (2) a provocação do órgão legitimado pra o ajuizamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade da lei federal invocada e, por fim, (3) o encaminhamento aos demais órgãos de execução do próprio Ministério Público de cópia do parecer, para conhecimento dos seus fundamentos jurídicos, sem caráter vinculativo, a fim de que os mesmos, nas respectivas esferas de atribuições, com total independência e autonomia, adotem as providências que entendam convenientes, inclusive provocação do controle difuso de constitucionalidade.
2 . Da Lei nº 12.191, de 13 de janeiro de 2010
A norma federal suscitada pelo noticiante decorreu de projeto de lei do Senado [1], de iniciativa do senador Garibaldi Alves Filho, do Rio Grande do Norte, e inicialmente buscava a anistia para os policiais e bombeiros militares deste Estado que, no ano de 2007, participaram de um movimento grevista e, em consequência, alguns foram punidos disciplinarmente e acusados pelo Ministério Público, em ações penais perante a Justiça Militar estadual, pela prática de crimes militares próprios, como, por exemplo, deserção, motim, incitamento e insubordinação (arts. 149, 155, 163 e 187 do Código Penal Militar). Na Câmara dos Deputados o projeto[2] foi alterado, sendo a anistia proposta estendida aos militares dos Estados de Pernambuco, Bahia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina e do Distrito Federal, acrescentando o efeito retroativo ao primeiro semestre do ano de 1997, ou seja, a anistia abrange um período superior a 13 (treze) anos.
Aprovado em ambas as Casas do Congresso Nacional, o projeto de lei foi encaminhado ao presidente da República, que o sancionou integralmente, com a redação final ampliada na Câmara dos Deputados, dando origem, assim, à Lei nº 12.191, de 13 de janeiro de 2010, que tem o seguinte texto:
LEI Nº 12.191, DE 13 DE JANEIRO DE 2010.
Concede anistia a policiais e bombeiros militares do Rio Grande do Norte, Bahia, Roraima, Tocantins, Pernambuco, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina e Distrito Federal punidos por participar de movimentos reivindicatórios.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o É concedida anistia a policiais e bombeiros militares do Rio Grande do Norte, Bahia, Roraima, Tocantins, Pernambuco, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina e Distrito Federal punidos por participar de movimentos reivindicatórios.
Art. 2o É concedida anistia aos policiais e bombeiros militares do Rio Grande do Norte, Bahia, Roraima, Tocantins, Pernambuco, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina e Distrito Federal punidos por participar de movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e de condições de trabalho ocorridos entre o primeiro semestre de 1997 e a publicação desta Lei.
Art. 3o A anistia de que trata esta Lei abrange os crimes definidos no Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), e as infrações disciplinares conexas, não incluindo os crimes definidos no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e nas leis penais especiais.
Art. 4o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 13 de janeiro de 2010; 189o da Independência e 122o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto
Luís Inácio Lucena Adams
A referida lei federal concede anistia a militares estaduais policiais e bombeiros que foram punidos por participar de movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e de condições de trabalho, isto é, por promoverem GREVE, direito que é expressamente vedado aos militares no art. 142, §3º, inciso IV, da Constituição da República, aplicável aos militares estaduais por força do art. 42, §1º, da mesma Carta.
Apesar da péssima redação e do eufemismo empregado no texto da lei ordinária, resta evidente que, por movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e de condições de trabalho, somente se pode entender que se trata de GREVE, ou seja, foram anistiados policiais e bombeiros que praticaram crimes militares próprios, tipificados no Código Penal Militar, como insubordinação, deserção, motim, revolta etc., no contexto de movimentos grevistas ocorridos nos últimos 13 anos.
Em face da referida lei de anistia já foi ajuizada, perante o STF, no dia 29/01/2010, pelo governador do Estado de Santa Catarina, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.377/SC (Rel. Min. Cezar Peluso), por alegada ofensa ao disposto nos arts. 1º, 25, caput e §1º, 60, §4º, inciso I, e 167, inciso II, todos da Constituição Federal.
3 . Do instituto da anistia
A anistia, também conhecida pela expressão indulgência do príncipe [3], é um instituto tipicamente de direito penal, constituindo uma causa de extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, inciso II, do Código Penal (art. 123, inciso II, do Código Penal Militar). Trata-se de ato legislativo, de competência do Congresso Nacional (CF, art. 48, inciso VIII), com que o Estado renuncia ao jus puniendi.
Em razão do seu caráter eminentemente penal, a anistia não tem conseqüências extrapenais, como efeitos cíveis ou administrativos. Daí porque não poderia a anistia, concedida pela Lei nº 12.191/2010, incluir, além dos crimes definidos no Código Penal Militar, infrações disciplinares conexas”, uma vez que estas são punidas de acordo com os estatutos disciplinares nas respectivas corporações militares estaduais, ou seja, em diplomas legais locais.
Sob o enfoque jurídico, não há conexão entre crimes e infrações disciplinares, já que as instâncias penal e administrativa são autônomas. Infrações disciplinares são matérias de direito administrativo, e não de direito penal. As sanções administrativas, nas polícias e bombeiros militares, são aplicadas diretamente pelos respectivos comandantes ou governadores, conforme a legislação de cada Estado, ao passo que as penas criminais são impostas pelo Poder Judiciário, pelas Auditorias Militares estaduais.
É absolutamente inadequada a concessão de anistia administrativa a servidores estaduais numa lei penal, editada pela União. Ora, se os Estados relacionados na Lei nº 12.191/2010 (Rio Grande do Norte, Bahia, Roraima, Tocantins, Pernambuco, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina e Distrito Federal) desejarem conceder “anistia” a infrações disciplinares cometidas por seus respectivos militares, que o façam através de lei estadual específica, obedecida a iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo (já que trata de servidores desse Poder), sob pena de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, dada a incidência do princípio da simetria, como já reconhecido em várias oportunidades pelo Supremo Tribunal Federal (ADIs nº 1440 e 2966).
Por outro lado, a anistia administrativa de infrações disciplinares, com efeito retroativo superior a 13 anos, tem conseqüências gravíssimas. Na seara administrativa, militares estaduais que eventualmente tenham sido preteridos em promoções ou mesmo tenham sido excluídos dos quadros das corporações em razão de punições administrativas, teriam direito à revogação das sanções disciplinares, com a obtenção de promoções retroativas e até a reintegração à tropa. Essas previsíveis medidas, já suscitadas pela associação noticiante, têm conseqüências também no campo financeiro, a ser suportado pelos cofres estaduais, uma vez que, ao menos em tese, seria cabível o ressarcimento ao servidor público que teve revogada sua punição disciplinar.
4 – Da situação jurídica dos militares dos Estados
Os servidores públicos militares, de uma forma geral, se submetem a um regime constitucional diferenciado dos servidores civis, com direitos e deveres próprios. Os militares dos Estados, policiais e bombeiros, são recrutados através de concursos públicos e têm as carreiras regidas pelo disposto nas Constituições Estaduais e por estatutos próprios, materializados em leis e decretos também estaduais.
Apesar de as polícias militares e corpos de bombeiro militares serem consideradas forças auxiliares e reserva do Exército, nos termos do art. 144, §6º, da Constituição da República, essas corporações estaduais se subordinam aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal. Essa condição de forças auxiliares confere à União a competência para legislar sobre normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares (CF, art. 22, inciso XXI), contudo, no plano administrativo-disciplinar, os Estados têm total autonomia em relação aos seus servidores, inexistindo relação de subordinação à União.
Somente na seara penal é que tanto os militares federais quanto dos Estados se submetem ao mesmo Código Penal Militar, haja vista ser de competência privativa da União legislar sobre direito penal (CF, art. 22, inciso I). Assim, do ponto de vista exclusivamente formal, é admissível a concessão de anistia a crimes e sanções penais por meio de lei federal, desde que esta não contrarie regras e princípios constitucionais, hipótese em que será materialmente inconstitucional.
5 – Da violação à norma constitucional que proíbe a greve aos militares e aos princípios da hierarquia e disciplina em que se baseiam as organizações militares
As polícias militares e corpos de bombeiros militares, nos termos do art. 42, caput, da Constituição Federal, são instituições organizadas com base nos princípios da hierarquia e disciplina, à semelhança do que ocorre em relação às Forças Armadas (CF, art. 142, caput). Aos militares, estaduais e federais, se aplicam os mesmos princípios e as mesmas vedações constitucionais de sindicalização e greve, bem como se sujeitam à mesma legislação penal militar.
O regime disciplinar imposto aos militares é tão específico e rigoroso, inclusive na seara administrativa, que o legislador constituinte afastou o cabimento do habeas corpus em relação às punições disciplinares (art. 142, §2º) e estabeleceu a Justiça Militar com um ramo específico do Poder Judiciário (arts. 92, inciso I, e 122 e seguintes) posição reafirmada na Emenda Constitucional nº 45/2004 que ampliou a competência dos Juízos Militares dos Estados para o processo e julgamento das ações judiciais contra atos disciplinares militares.
A legislação penal militar, estabelecida em codificação própria, é corolário da própria conformação constitucional das organizações militares, servindo para tutelar os seus maiores bens jurídicos que são, justamente, os princípios da hierarquia e disciplina. Assim, sem muito esforço, se percebe que a Lei nº 12.191/2010 afronta a Constituição da República ao ignorar tais princípios constitucionais e a regra – também constitucional que proíbe os militares fazerem greve.
Com efeito, ao anistiar de forma genérica crimes definidos no Código Penal Militar relacionados com movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e de condições de trabalho”, o legislador ordinário abriu mão da punição de condutas criminosas que atentaram contra o arcabouço constitucional que rege as instituições militares. A consequência prática dessa anistia é impunidade de crimes contra a disciplina militar e o reconhecimento, ainda que indireto, do direito de greve aos militares, mesmo diante da expressa vedação constitucional, o que certamente estimulará outros movimentos grevistas de policiais e bombeiros e a insubordinação nas corporações militares estaduais, vulnerando os princípios da hierarquia e disciplina.
A Carta Magna proíbe aos militares até mesmo a sindicalização, ou seja, veda a congregação desses servidores públicos com vista à reivindicação de seus interesses, vedando-lhes também a greve (art. 142, §3º, inciso IV), direitos sociais que a própria Constituição assegura a todos os demais trabalhadores e servidores públicos civis (arts. 8º, 9º e 37, incisos VI e VII). Note-se que até mesmo em relação a estes, aos quais são reconhecidos os direitos de sindicalização e greve, a Constituição Federal determina que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei” (art. 9º, §2º). Com muito mais propriedade, deve o militar, a quem são vedados tais direitos, ser submetido às penas da lei pelos crimes contra a disciplina cometidos em atividades grevistas.
Foi uma escolha do legislador constituinte a militarização dos corpos de bombeiros e de uma das polícias dos Estados-membros. Pode-se até discutir doutrinariamente se escolha foi ou não acertada, contudo, o fato que não pode ser ignorado é que constitucionalmente são instituições militares e como tais devem observar rigidamente os princípios da hierarquia e da disciplina. Daí porque não é admissível o legislador ordinário produzir uma lei que materialmente afronte tais princípios constitucionais, ainda que a alegada intenção seja humanitária.
A greve de policiais e bombeiros militares implica em recusa coletiva de obediência e abandono de locais de trabalho, condutas que, em tese, tipificam crimes como insubordinação, deserção, motim ou revolta, além de transgressão disciplinar. Esses crimes, classificados como militares próprios (somente são previstos na legislação militar), atentam contra a disciplina militar.
A observância ao princípio da disciplina militar é obrigatória em razão da força normativa do Texto Constitucional, não se submetendo ao juízo de conveniência do administrador ou do legislador ordinário. Assim, da mesma forma que não pode o superior hierárquico deixar de punir o subordinado (o que também é crime de condescendência, previsto na legislação penal militar – art. 322), também não pode o legislador comum anistiar penas decorrentes de crimes militares praticados em meio a greves, sob pena de vulneração àqueles princípios e regras constitucionais.
Greves – ou, nos dizeres da Lei nº 12.191/2010, “movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e de condições de trabalho” – no âmbito de instituições militares, além de inconstitucionais, têm implicações gravíssimas, seja porque se tratam de servidores armados, seja porque vulneram os fundamentos de qualquer instituição militar que são a hierarquia e a disciplina.
No âmbito dos Estados, as polícias e corpos de bombeiros militares desempenham um imprescindível e insubstituível serviço na segurança pública, sendo responsáveis pela manutenção da ordem, pelo policiamento ostensivo e pelas atividades de defesa civil. Tratam-se, à evidência, de serviços de relevância pública assegurados na Constituição. A paralisação coletiva dos seus servidores, total ou parcial, implica, portanto, na inexecução ou, no mínimo, na má prestação do serviço de segurança pública, que é um direito social inalienável previsto nos arts. 6º e 144 da Constituição da República. Assim, é função institucional do Ministério Público zelar pelo seu efetivo respeito, nos termos do art. 129, inciso II, da Carta.
A segurança pública, nos termos da Constituição Federal, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, sendo dever do Estado e direito e responsabilidade de todos. Sem segurança, todos os demais direitos assegurados na Carta Magna, ficam ameaçados. Não existe Estado sem ordem pública. É impossível a substituição de policiais e bombeiros militares que resolvam, ao seu talante, paralisar as atividades em “movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e de condições de trabalho”. A lei de anistia ora examinada ignora todas essas implicações, servindo, por outro lado, de estímulo para greves futuras de militares estaduais.
Em movimentos grevistas de policiais e bombeiros militares ocorridos nos últimos anos, inclusive no Estado do Rio Grande do Norte, o único componente que impediu uma adesão maciça de praças às paralisações foi o temor das graves conseqüências penais e administrativas à insubordinação, com o que os comandantes tiveram força para manter a obediência da maioria da tropa. Sem esse receio, é impossível aos comandantes militares manter a ordem e a disciplina entre os subordinados.
É de conhecimento geral que, apesar da proibição constitucional, existem agremiações de militares que funcionam como verdadeiros sindicatos, sob denominação de “associações”, com lideranças que não raro enveredam para a política partidária com o prestígio obtido nas reivindicações. A própria noticiante – a Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte – é uma delas. As polícias e bombeiros militares são categorias com milhares de servidores, com potencial de eleger políticos para os mais diversos cargos eletivos, o que leva à indesejável politização (no mau sentido do termo) da atividade militar, fazendo surgir em meio à tropa a peculiar figura do “militar-sindicalista”, que, comumente, encabeça movimentos ilegais de paralisações e recusas coletivas de obediência.
A anistia aos militares grevistas, punidos penal ou administrativamente, deprecia a autoridade hierárquica dos comandantes – inclusive dos Governadores dos Estados – e abre um precedente que incentiva a indisciplina amotinamentos futuros, pelo que deve ser considerada materialmente inconstitucional.
6 – Da violação ao princípio constitucional da isonomia
A lei de anistia em comento inexplicavelmente se restringiu aos policiais e bombeiros militares do Distrito Federal e dos estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Ceará e Santa Catarina, o que ofende o princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5º, caput). Se o objetivo era anistiar militares grevistas, porque excluir de sua abrangência os policiais e bombeiros militares dos demais estados da Federação que eventualmente tenham reivindicado melhorias de soldos e de condições de trabalho? O que diferencia, por exemplo, os policiais militares de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná ou Amazonas dos que foram contemplados pela anistia? Qual a razão, sob outro enfoque, para a União não anistiar também os seus próprios militares (das Forças Armadas) em situação semelhante, como ocorreu recentemente em relação aos controladores de voo da Aeronáutica? Evidentemente, não existe uma razão lógica ou razoável para a discriminação.
No caso vertente, além de extrapolar sua competência legislativa, relativamente à anistia de sanções disciplinares, a União legislou casuisticamente para, dentre todos os Estados, escolher discricionariamente apenas 8 (oito) deles e o Distrito Federal como destinatários da norma federal. Desconhecem-se os motivos da discriminação, contudo, é evidentemente inconstitucional dar tratamento penal diferenciado aos militares dos outros 18 (dezoito) Estados-membros não-contemplados pela anistia.
7 – Da violação ao princípio federativo: a invasão da competência legislativa estadual para dispor sobre punições disciplinares dos policiais e bombeiros militares
O modelo de estado federal, adotado pela Constituição da República, assegura autonomia aos Estados-membros para legislar sobre assuntos de interesse local, como é o caso dos seus servidores, civis e militares. Os Estados têm o poder de auto-organização. Ainda quando haja competência legislativa concorrente, cabe à União apenas editar normas gerais, isto é, princípios e diretrizes. A União não poderia jamais legislar sobre regime disciplinar de servidores estaduais, muito menos de forma casuísta para anistiar sanções administrativas de alguns estados num determinado lapso temporal.
Como ensina Paulo Gustavo Gonet Branco[4], “O critério de repartição de competências adotado pela Constituição não permite que se fale em superioridade hierárquica das leis federais sobre as leis estaduais. Há, antes, divisão de competências entre esses entes. Há inconstitucionalidade tanto na invasão da competência da União pelo Estado-membro como na hipótese inversa”.
Ainda que, em tese, a União possa conceder anistia a crimes e sanções penais, já que toda legislação penal é federal (CF, arts. 21, inciso XVII, e 22, inciso I), não pode a “indulgência do príncipe” se estender às infrações administrativas e sanções disciplinares aplicadas aos militares dos Estados e do Distrito Federal com base em leis estaduais ou distritais, sob pena de violação do princípio federativo, com clara invasão da autonomia dos Estados.
O art. 42, §2º, da Constituição Federal, ao dispor sobre os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, determina que cabe à lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, §3º, X, que, por sua vez, trata “sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações específicas dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra” (destaques acrescidos).
Resta evidente, desta forma, que o estatuto dos militares estaduais, no qual se disciplinam os direitos e deveres – e, também, as sanções administrativas relacionadas com as eventuais violações destes – é matéria a ser tratada exclusivamente em lei estadual específica. Note-se que o art. 22, inciso XXI, da Constituição da República, somente autoriza a União a legislar sobre “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares”, e não sobre infrações administrativas ou sanções disciplinares.
Logo, se não compete à União dispor sobre punições disciplinares dos policiais e bombeiros dos Estados e do Distrito Federal, também não lhe cabe conceder anistia às sanções administrativas eventualmente aplicadas a tais servidores estaduais. As instâncias penal e administrativa são autônomas, de sorte que anistia a crimes não implica, necessariamente, em anistia às infrações administrativas, e vice-versa. Assim, da mesma forma que uma lei estadual não poderia anistiar infração penal, uma lei federal não poderia anistiar sanção disciplinar aplicada a servidor militar estadual com base na legislação local do Estado-membro.
Sob outro enfoque, como anteriormente foi registrado, a anistia com efeito retroativo a 1997 tem conseqüências financeiras a serem suportadas pelos Estados. Com efeito, ex-policiais e ex-bombeiros que foram expulsos das respectivas corporações e, agora, teriam anuladas suas exclusões por força da lei de anistia, deveriam ser reintegrados aos quadros. Também os militares punidos administrativamente, porém sem expulsão, que foram justificadamente preteridos em promoções em razão de tais punições teriam direito a ascensão funcional com efeito retroativo. Em ambos os casos existiria repercussão pecuniária. Assim, a União, por via transversa, criou obrigações pecuniárias para os Estados, o que também viola o pacto federativo (matéria que foi argüida na ADI 4377).
Além da violação do princípio federativo, ainda ficou evidenciada a inconstitucionalidade formal da lei de anistia, uma vez que a sua iniciativa partiu do Poder Legislativo, mais precisamente do Senado. Em pelo menos duas oportunidades o Supremo Tribunal Federal já se posicionou em questões relativas à iniciativa legislativa sobre regime jurídico e punições de militares estaduais, assentando o firme entendimento de que cabe privativamente ao chefe do Poder Executivo:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 10.076 DE 02 DE ABRIL DE 1996 DO ESTADO DE SANTA CATARINA, PELA QUAL FORAM CANCELADAS PUNIÇÕES APLICADAS A SERVIDORES CIVIS E MILITARES NO PERÍODO DE 1º DE JANEIRO DE 1991 ATÉ A DATA DE SUA EDIÇÃO. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 2º E 5º, XXXVI, 61, §1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO. Plausibilidade do fundamento da inconstitucionalidade formal, dado tratar-se de lei que dispõe sobre servidores públicos, que não teve a iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual, como exigido pela norma do art. 61, §1º, II, c, da Constituição, corolário do princípio da separação dos Poderes, de observância imperiosa pelos estados membros, na forma prevista no art. 11 do ADCT/88. Conveniência da pronta suspensão de sua eficácia. Cautelar deferida” (ADI 1440 MC/SC – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade – Rel. Min. Ilmar Galvão – Julgamento em 30/05/1996, por maioria – DJ de 1º/06/2001).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MILITARES. REGIME JURÍDICO. INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Emenda Constitucional 29/2002, do estado de Rondônia. Inconstitucionalidade. À luz do princípio da simetria, é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo estadual as leis que disciplinam o regime jurídico dos militares (art. 61, §1º, II, f, da CF/88). Matéria restrita à iniciativa do Poder Executivo que não pode ser regulada por emenda constitucional de origem parlamentar. Precedentes. Pedido julgado procedente” (ADI 2996/RO – Rel. Min. Joaquim Barbosa – Julgamento em 06/04/2005, unânime – DJ de 06/05/2005).
8 – Da vedação constitucional à proteção deficiente
O princípio da razoabilidade tem duas vertentes: protege contra o excesso e contra a proteção deficiente. Desta forma, do mesmo modo que o legislador ordinário não pode, na seara penal, criar sanção excessiva, também não pode deixar de proteger bens jurídicos relevantes, especialmente aqueles destacados no próprio Texto Constitucional. Nesse sentido, vale transcrever a doutrina de Gilmar Ferreira Mendes [5], ao tratar do tema inconstitucionalidade material:
“Quanto à proibição de proteção deficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado), já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, naqueles casos em que o Estado não pode deixar de proteger de forma adequada esses direitos.
Dessa forma, para além da costumeira compreensão do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (já fartamente explorada pela doutrina e jurisprudência pátrias), há outra faceta desse princípio, a qual abrange uma série de situações, dentre as quais é possível destacar a da proibição de proteção insuficiente de determinada garantia fundamental”.
Lênio Luiz Streck talvez seja o doutrinador nacional que melhor trate do tema da dupla face do princípio da proporcionalidade em seu artigo “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”[6]. Em outro artigo [7], o ilustre professor gaúcho pondera: “Ter-se-ia uma espécie de dupla face de proteção dos direitos fundamentais: a proteção positiva e proteção contra as omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, como também por deficiência na proteção. Assim, por exemplo, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental (nas suas diversas dimensões), como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Esta (nova) forma de entender a proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador”. Logo em seguida assevera: “Dito de outro modo, o modelo de Estado Democrático de Direito implica na sujeição do político ao jurídico. As Constituições assumem um papel compromissário e dirigente. A liberdade de conformação legislativa fica sobremodo restringida, porque vinculada também materialmente ao texto constitucional”.
O exercício de todos os direitos fundamentais pressupõe um Estado de Direito, com ordem pública e observância das regras mínimas de convivência humana. O monopólio da força pelo Estado, em última análise, é que garante o exercício das liberdades públicas. Sob o enfoque do princípio da proporcionalidade, é necessário tanto proteger o cidadão dos excessos estatais (proibição de excesso) quanto assegurar de modo eficiente e suficiente a segurança da sociedade (proibição de proteção deficiente).
Nesse contexto, as Forças Armadas e as Polícias Militares assumem, nos termos da Constituição Federal (arts. 142, caput e 144, §5º), um papel insubstituível na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na preservação da lei e da ordem pública. Daí porque às instituições militares foi conferido, pelo legislador constituinte, um tratamento diferenciado dos servidores civis, com garantias, deveres e vedações próprios. Os princípios da hierarquia e disciplina com base nos quais são organizadas essas instituições, assim como a vedação da sindicalização e da greve e a proibição de filiação a partidos políticos, se constituem numa garantia para a sociedade num regime democrático, a fim de evitar uma politização do uso da força militar.
Não há dúvida, por outro lado, que a impunidade de crimes militares e infrações disciplinares relacionadas com a quebra da hierarquia depreciam a autoridade dos comandantes militares e, sobretudo, estimulam atos de indisciplina futuros. O poder sancionador (penal e administrativo) funciona como uma garantia da observância daqueles princípios e regras constitucionais, que são os bens jurídicos tutelados nas normas penalizadoras sob enfoque.
O bem jurídico penal tutelado nos crimes contra a disciplina militar são valores constitucionais, ou seja, trata-se de um típico caso em que o direito penal reprime condutas que lesam diretamente um princípio constitucional. Assim, poderia o legislador ordinário simplesmente desproteger um bem jurídico de relevância constitucional? A resposta, diante dessa dupla face do princípio da proporcionalidade, é indubitavelmente negativa.
Dessa forma, revela-se desproporcional e desarrazoada uma lei ordinária que casuistamente, sem uma razão excepcional declarada ou reconhecida, simplesmente anistia as punições criminais e disciplinares militares, relacionadas com a inconstitucional prática de greves por militares, nos últimos 13 (treze) anos. A referida legislação infraconstitucional, portanto, infirma, vulnera, tira a eficácia de uma garantia constitucional da sociedade, essencial para a manutenção da ordem pública e do regime democrático. Logo, deve ser considerada materialmente inconstitucional por tornar insuficiente uma proteção de uma garantia fundamental.
9 – Da necessidade de providências urgentes para impedir que a lei inconstitucional surta efeitos irreversíveis
É possível verificar da própria provocação da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte que a malsinada lei de anistia, apesar de flagrantemente inconstitucional, tem a potencialidade de gerar efeitos irreversíveis e danosos à administração pública em geral e à administração militar, em particular. Com efeito, todas as ações penais em tramitação poderão ser fulminadas pela extinção da punibilidade decorrente da anistia e, uma vez transitada em julgado a sentença para o Ministério Público, a respectiva decisão judicial se torna definitiva, já que não existe previsão legal de revisão criminal em favor do órgão acusador.
Relativamente às sanções administrativo-disciplinares aplicadas, os militares eventualmente punidos e expulsos das corporações estaduais poderão ser reintegrados aos cargos, com a possibilidade de reivindicarem – inclusive judicialmente – promoções retroativas e indenizações de todo o tempo em estiveram afastados, com evidentes reflexos na estrutura funcional das organizações militares e nas finanças dos Estados-membros atingidos pela norma federal.
Também não pode ser desconsiderado o efeito encorajador para novas greves de policiais e bombeiros militares que a anistia provoca, especialmente em ano de eleições gerais quando várias categorias de servidores públicos pressionam por melhorias salariais, sempre acenando com a possibilidade de paralisação das atividades. Por outro lado, com contingentes da magnitude[8] das polícias e bombeiros militares, eventuais motins (insubordinações coletivas) podem assumir contornos catastróficos, inclusive descambando para revolta (motim de militares armados), praticamente impossíveis de serem coibidos com rapidez e eficiência até pelas Forças Armadas.
9 – Conclusão
Nesse contexto, evidenciada a inconstitucionalidade da Lei nº 12.191, de 13 de janeiro de 2010, é obrigação do Ministério Público, nos termos dos arts. 127, caput, e 129, incisos II e VII, da Constituição da República, promover a defesa da ordem jurídica e todas as medidas necessárias à garantia da efetividade do serviço de segurança pública.
Em face de todo o exposto, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, por sua Promotoria de Justiça de Investigações Criminais e de Controle Externo da Atividade Policial da comarca de Natal, RESOLVE adotar as seguintes providências:
1. Encaminhar ao Procurador Geral da República representação solicitando que, se entender pertinente, promova, perante o Supremo Tribunal Federal, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE com o objetivo de que seja declarada inconstitucional a Lei nº 12.191, de 13 de janeiro de 2010, a fim de afastar definitivamente e por completo a sua eficácia;
2. Expedir recomendação aos Comandantes Gerais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio Grande do Norte no sentido de que, reconhecendo a inconstitucionalidade da Lei nº 12.191, de 13 de janeiro de 2010, se abstenham revogar quaisquer punições disciplinares aplicadas a militares estadual que participaram de greves e também se abstenham de interromper investigações materializadas em inquéritos policiais militares, sindicâncias ou processos administrativos sobre os mesmos fatos;
3. Encaminhar, para conhecimento, cópias do presente parecer à Governadora do Estado, ao Secretário de Estado da Segurança Pública e da Defesa Social, ao Procurador-Geral de Justiça e coordenador do CAOP Criminal;
4. Encaminhar cópia do presente parecer aos titulares das 3ª, 66ª, 67ª, 68ª, 69ª, 70ª e 79ª Promotorias de Justiça da comarca de Natal, que têm atribuições na seara militar, para conhecimento dos seus fundamentos jurídicos, sem qualquer caráter vinculativo ou mesmo de orientação, a fim de que, acaso concordem com os mesmos, nas respectivas esferas de atribuições, com total independência e autonomia, adotem as providências que entendam convenientes, inclusive suscitação do controle difuso de constitucionalidade;
5. A publicação do presente parecer no Diário Oficial do Estado.
A secretaria desta Promotoria de Justiça providencie, com urgência, a expedição de ofício às autoridades acima especificadas e ao presidente da associação, com cópia do presente parecer, a fim de que tomem conhecimento do seu teor.
Após, voltem os autos para ulteriores deliberações.
Natal, 10 de fevereiro de 2010.
Wendell Beetoven Ribeiro Agra
19º Promotor de Justiça
--------------------------------------------------------------------------------
[1] Projeto de Lei do Senado nº 122 de 2007;
[2] Projeto de Lei nº 3.777 – B de 2008;
[3] MAGGIORE, Giuseppe. Derecho penal. Bogotá: Temis, 1972, v. II, p. 357.
[4] Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 873;
[5] Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 1.065;
[6] (Neo)Constitucionalismo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre, IHJ, 2004, pág. 243 e segs.
[7] O princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico.
[8] A Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, tem um contingente superior a 10.000 integrantes."
FONTE:
http://200.217.213.202/dei/dorn/docview.aspx?id_jor=00000001&data=20100219&id_doc=291428